
Léia Moura Oliveira Rocha entrou no consultório pisando firme com os dois pés. Apesar de seu andar claudicante, o sorriso em seu rosto transmitia a verdadeira mensagem: gratidão. Por mais de cinco décadas, Léia não soube o que era pisar no chão com a planta dos pés. Nascida em Presidente Dutra, no interior da Bahia, ela passou a vida inteira tentando esconder os pés tortos congênitos.
Aos 54 anos, Léia carrega as marcas de uma vida sofrida por preconceitos por conta de sua condição, desde os apelidos cruéis da adolescência até sandálias improvisadas que usou a vida inteira. “Tive de me casar com esse calçado feito às pressas. Eu me sentia tão envergonhada”, lembra.
Hoje, sentada com os dois pés plantados no chão, aguardando sua avaliação pelo ortopedista, Léia traz nos olhos o sentimento misto de gratidão e esperança ao falar do dia em que, pela primeira vez, colocou um tênis. “Quando eu vi meu pé assim retinho, senti que era Deus falando comigo”, relembra Léa, com a voz preenchida de emoção.
Há quase um ano, Léia tem passado pelo tratamento adaptado do método de Ponseti pelo Dr. Davi Haje, ortopedista do Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF), gerido pelo Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do DF (IgesDF). “Quando eu era adolescente, eu não aguentava mais os apelidos maldosos que me colocavam. Foi quando eu pedi a Deus que me curasse do pé torto. Minha família me disse que eu precisava aceitar a minha condição”, recorda, emocionada.

Porém, em 2023, vendo uma reportagem na TV sobre o trabalho do Dr. Davi, Léia teve certeza de que Deus havia trazido uma resposta. “Deus estava me mostrando o caminho”, afirma. Movida pela fé, Léia descobriu que, no Ambulatório de Ortopedia Pediátrica e Pé Adulto do HBDF, existia um tratamento conservador capaz de corrigir o pé torto em adultos, sem a necessidade de cirurgias complexas.
Adaptando o método para os pacientes adultos
Dr. Davi Haje explica que, desde 2018, vem adaptando o método originalmente criado para recém-nascidos para pacientes adultos. “O dorso do pé não foi feito para suportar carga. A longo prazo, surgem dores, deformidades e dificuldades para calçar sapatos. O corpo se adapta como pode, mas com consequências prejudiciais. Antes, o único caminho para um adulto com pé torto era uma cirurgia muito invasiva, com alto risco de complicações. Com nossa técnica, manipulamos e imobilizamos o pé em gessos seriados, que vão sendo trocados de maneira semanal, promovendo a correção sem grandes cortes. É um divisor de águas na qualidade de vida dessas pessoas”, conta o Dr. Haje.
O protocolo começa com exames clínicos e de imagem, para avaliar condições associadas, como diabetes ou risco de trombose. Em seguida, a cada semana, o gesso é retirado e um novo é colocado, sempre até a base da coxa, em um ciclo que dura, em média, 11 semanas. Depois, normalmente é necessária uma pequena cirurgia para a liberação do tendão de Aquiles, feita em centro cirúrgico em apenas alguns minutos, e mais quatro a oito semanas de imobilização antes de a fisioterapia entrar para ajudar na reeducação da marcha.

Para acessar esse tratamento conservador, o paciente deve procurar a Unidade Básica de Saúde (UBS), que fará o encaminhamento via regulação para a ortopedia do Hospital de Base. O Dr. Haje explica que alguns pacientes chegam por referência direta de outros colegas da rede ou, eventualmente, conseguem atendimentos com encaixes em caso de desistências. Ele explica ainda que o tratamento ideal do pé torto deve começar na primeira infância, onde o sucesso é praticamente total, evitando dores e deformidades futuras. “Infelizmente, nem todas as crianças conseguem tratamento precoce, muitas vezes por falta de acesso ou informação, então recebemos muitos casos em adultos”, explica.
De acordo com o Dr. Haje, o tratamento em crianças é mais rápido. “É mais simples, com menor número de gessos, menos necessidade de cirurgias, menos complicações. Em adultos, o processo é mais complexo, mais doloroso e mais demorado”, relata.
Entre as mãos que ajudaram a transformar a vida de Léia, estão as do técnico de imobilizações ortopédicas Hermelino Ferreira Matinada, carinhosamente conhecido como Mestre Bimba. Com 67 anos de idade e quase cinco décadas dedicadas à ortopedia no Hospital de Base, Mestre Bimba carrega no olhar a experiência de quem viu centenas de histórias como a de Léia se reescreverem. “É muito gratificante pegar um paciente que nunca calçou um tênis, fazer todo o trabalho e, ao final, ver essa pessoa andando de verdade, pisando com a planta do pé”, emociona-se.

Trabalhando desde 1976 na unidade, Mestre Bimba relembra que o momento mais emocionante é ver o paciente, ainda no meio do tratamento, começando a ganhar confiança. “Quando a gente olha para aquele pé tão deformado e pensa ‘será que vai dar jeito?’, e depois vê o pé corrigido, é uma alegria que não dá pra descrever. É gratificante para toda a equipe”, conclui.
Uma nova jornada, passo a passo
Léia chegou a Brasília em agosto de 2024, disposta a enfrentar a dor das primeiras sessões. “No começo, sentia muito. Cada troca de gesso eu sabia que era um passo rumo à minha liberdade, mas o corpo reclamava.” Apesar do gesso, Léia conseguia se manter ativa, graças à ajuda de pessoas da casa de apoio onde ficou hospedada durante o período. “Era difícil, mas eu tinha muita esperança”, lembra.
Para o Dr. Haje, cada caso é uma vitória: “Atendemos cerca de 12 adultos por ano, mas é a repercussão nas redes sociais e nas matérias de televisão que fez surgir um fluxo maior de pacientes. Pessoas que viveram na sombra do preconceito por décadas, finalmente conseguem enxergar a esperança.” Ele recorda que o primeiro paciente adulto tratado ali, em 2018, caminha sem dor até hoje.

Em dezembro de 2024, Léia retornou à Bahia. O que a esperava era um reencontro emocionado com a própria cidade. “Voltei de tênis,” ela sorri, “e todo mundo me olhou. Meu marido e meus filhos choraram de alegria. Minha neta de 15 anos não parava de dizer: ‘vó, que incrível!’”.
Hoje, retornando para avaliação com o Dr. Haje, Léia espera ser liberada para começar a alcançar novos horizontes. “Agora, quero correr. Meu filho até me deu um tênis novo. Quem sabe uma maratona um dia?,” sonha com gratidão. O Dr. Haje nota que um dos pés ainda precisa de um pouco mais de trabalho de fisioterapia. “Vamos começar com uma caminhada”, recomenda.
Mas nada é capaz de desanimar Léia. “O Dr. Davi é um anjo enviado por Deus. Foi a resposta à minha oração de tantos anos atrás. Quero que esse tratamento chegue a mais pessoas como eu, que não tinham onde buscar ajuda. O SUS salvou meu corpo e minha alma”, agradece Léia.