Artista grava entrevista e lembra, emocionado, o trabalho realizado com muito amor para as crianças internadas com câncer
O cantor Ney Matogrosso está cumprindo isolamento da pandemia em sua fazenda no Mato Grosso. Mas, foi generoso em atender à solicitação da Assessoria de Comunicação (Ascom) do IGESDF para que desse um depoimento, em um vídeo comemorativo dos 60 anos do Hospital de Base.
O primeiro emprego dele foi nesse hospital. Durante quase cinco anos, recebia, desenhava e analisava lâminas da patologia. Ficou dois anos fora e voltou, dessa vez, para a pediatria, onde fazia recreação com as crianças que tinham câncer.
Em alguns momentos, risos; em outros, pura emoção.
Ney Matogrosso, artista reconhecido no Brasil e fora dele, destaca que o trabalho realizado com mais amor, em sua vida, foi com as crianças do Base. Nesse momento, declara: Brasília me deu a noção de mim. Brasília me deu a noção de artista!
A entrevista foi gravada por skype. Sem pressa. Sem ansiedade. Na verdade, uma boa conversa.
Confira a entrevista na íntegra:
“Brasília me deu a noção de ser humano. A noção de artista”
Assessoria de Comunicação do IGESDF – Que memória você tem do período em que trabalhou no Hospital de Base?
Ney Matogrosso – Eu me lembro de tudo. Recordo de todo o tempo que passei lá. Tudo o que fiz no hospital eu me lembro. A história é a seguinte: eu fui pra Brasília, o médico Miziara [dr. Hélcio Miziara, implantou a Anatomia Patológica no Hospital de Base] morava com o meu primo, Demóstenes Rio Branco. Eu e o Diógenes, irmão do Demóstenes, fomos morar com eles, que eram solteiros e moravam num apartamento enorme. Depois, eles se casaram e foi cada um para um lado, cada um tomou seu rumo. Mas aí, nós já estávamos trabalhando. Nós começamos a trabalhar no Hospital porque ele tinha sido inaugurado recentemente e ainda carecia de mão de obra. Então, foi um técnico do Rio de Janeiro pra Brasília e nos ensinou a realizar o nosso trabalho, que era fazer biópsias lá no laboratório de anatomia patológica.
Ascom – Como foi pra você fazer um trabalho tão diferente?
Ney – Eu fazia as lâminas. Eu e o “Dodi”, que era como chamávamos o Diógenes. Nós fazíamos as lâminas. Meu problema foi no primeiro dia. Me disseram que eu tinha que ir num lugar pra pegar uns materiais, eu dei de cara com um homem morto, aberto. Coisa que eu nunca tinha visto na minha vida. Passei assim uns cinco dias sem conseguir comer, sempre me lembrava daquilo. Depois, a gente se acostuma com tudo, né?
Ascom – Você gostava de fazer esse trabalho? O Dr. Miziara fala com carinho da sua dedicação…
Ney – Eu gostava de fazer aquele trabalho porque eu sabia que era muito importante. Tinha vidas ali, na minha mão. Diagnósticos de uma doença, de câncer, tudo isso passava por mim. Sabe que chegou uma hora, que bastava eu olhar o material que eu já sabia se aquilo era um câncer, ou se não era. Trabalhei muito tempo na anatomia patológica, de 1961 até 1966. Pedi uma licença sem remuneração e fiquei dois anos fora. Quando voltei, pedi ao diretor, que eu conhecia, que gostaria de trabalhar com crianças ou com loucos. Então, na época, existiam duas salas na pediatria. Uma era uma escola, com uma professora. E a outra eu podia usar e fazer recreação com aquelas crianças. Fiquei fazendo isso. É muito interessante lembrar disso, porque as pessoas me olhavam esquisito pelo fato de eu estar cuidando de criança; diziam que isso não era serviço de homem. Nunca entendi isso sabe… como não era serviço de homem? É serviço de ser humano, né? E eram crianças, assim, muitas delas, no dia seguinte, não estavam mais. Então, eu entendi qual era a minha função ali. Que era transformar o tempo que eu estivesse com elas ali, no melhor possível. Então, eu comprava barro com meu dinheiro pra elas fazerem cerâmica, comprava tinta pra elas pintarem. Comprava com meu dinheiro mesmo. E fazia máscaras, teatro. Às vezes, eu era o cavalinho delas, montavam três, quatro nas minhas costas. Claro que para o Hospital devia ser muito estranho mesmo. Um adulto, de quatro, andando com três crianças montadas nas costas… Mas a direção me liberava pra sair com aquelas crianças e ir ao Jardim Zoológico. Eu gostava… vou te dizer… foi o único trabalho na minha vida que eu fiz com extremo amor… (emocionado).
Ascom – De que forma essa experiência te marcou? O que você levou pra vida com esse trabalho no Hospital de Base?
Ney – Com esse trabalho, com as perdas das crianças que aconteciam, eu entendi que não poderia haver… (emocionado) que não dava pra ter apego, porque as crianças estavam nessa situação, né. Então, eu me dispunha a tornar os últimos dias, daquelas que estavam nos últimos dias, o melhor possível. Te confesso que a primeira vez (do falecimento de um paciente) eu fiquei muito triste porque eu me apeguei logo de cara àquelas crianças. Mas depois eu entendi que era isso. Eu estava trabalhando dentro de um hospital, né?! Por que a presença das crianças era transitória. Iam umas, vinham outras… E muitas morriam, né! E eu entendi que o meu trabalho era esse: tornar a vida delas o mais agradável possível. Eram crianças que ficavam abandonadas muito tempo no Hospital.
Ascom – Qual era sua profissão antes de trabalhar no Hospital de Base?
Ney – Eu nunca tinha trabalhado. Saí da Aeronáutica com 19 anos e cheguei em Brasília. Foi o meu primeiro trabalho.
Ascom – E depois, isso serviu na guinada completa que você daria na sua vida?
Ney – Essa experiência aí eu carreguei pro resto da vida e me foi muito útil em diversos momentos. Na época em que a Aids estava ceifando a vida dos meus amigos, eu tinha esse entendimento já. Não era fácil. Mas eu tinha um entendimento dentro de mim que não adiantava lutar. Era isso, aceitar essa situação e amparar, dentro do possível.
Ascom – Esse trabalho no Hospital de Base te deu essa noção de acolhimento e de entendimento pra outras epidemias, que estavam vindo?
Ney – Me deu um entendimento pra tudo que veio depois. Todas as doenças. Os amigos. Eu felizmente não tive nenhuma dessas doenças, mas eu tinha muitos amigos que, inclusive, foram embora… Naquela época a pessoa tinha um diagnóstico hoje e daqui a um ano tava morta! Era tudo no escuro, não tinha informação. É como essa coisa acontecendo agora, essa pandemia…
Ascom – E como você está lidando com a Covid-19?
Ney – Estou lidando com a paciência possível. Têm dias que, não vou te dizer que sou estabilizado… eu oscilo. Alguns dias, eu tô de saco cheio; outros dias, estou cansado de ficar preso, mas não acredito em todas essa liberação que tem aí não… Os profissionais de saúde estão na linha de frente. Tenho muitos amigos médicos que já pegaram a Covid, já voltaram. A gente está vivendo isso, não tem como fugir, os médicos estão vivendo isso porque a função deles na vida é acudir as pessoas. E é isso, ser solidário, nesse momento… A vida é engraçada né?, eu trabalhei num hospital e tenho muitos, muitos amigos médicos, sem ter procurado, sabe… Justamente por isso, quero que saibam que tive um enorme prazer em começar a minha vida em Brasília. Eu passei a existir em Brasília. Antes eu não tinha noção. Antes, eu era um adolescente lá do fundo do Matogrosso, sem ter noção de si.
Brasília me deu a noção de mim!
Brasília me deu a noção de ser humano!
Brasília me deu a noção de artista!
Brasília me deu várias noções.
Eu sou muito grato a essa cidade por ter me proporcionado essa descobertas, né! E ao Hospital também. Porque imagina, ter dado de cara com aquele homem morto no segundo dia, aquilo transformou a minha cabeça! Mudou a minha cabeça!
Ascom – Você acha que o Hospital de Base foi um exercício de transformação, pra você?
Ney – Foi. Eu te diria que foi um exercício de aceitação. Porque têm momentos em que a única alternativa é aceitar. Tem gente que não aceita e fica se debatendo, se debatendo e sofrendo, ainda mais! Eu acho que quando você aceita as vicissitudes da vida, fica numa situação, não diria confortável… mas, menos incômoda, né! É quando dentro de você, aceita mesmo!
Ascom – Ficamos muito gratos de você ter atendido nossa solicitação, e de ouvir suas palavras e de saber que a sua participação dentro do Hospital de Base te traz toda essa memória…
Ney – Imagina, eu pintei aquele andar das crianças, pintei a parede inteira! Pintei flores, pintei passarinhos, beija-flores, borboletas. Um andar inteiro. Passei quase um ano pintando. Eu tinha muito gosto de fazer isso (diz, emocionado), de trabalhar com aquelas crianças. De trabalhar no hospital! Isso te dá uma percepção do que pode ser feito pelo outro! É disso que se trata! Ser solidário, ter compaixão, aprendi aí! Por isso, quero deixar aqui os meus parabéns ao Hospital de Base! 60 anos… Exatamente, estou com 79, fui pra lá com 19, exatamente isso!
Entrevista: Mara Moreira / Agência IGESDF